Dogville

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Em tempos de polarização, uma peça com a temática de Dogville soa pertinente e atual. De forma didática o texto de Lars Von Trier, que veio a público em 2003 com o lançamento do filme de nome homônimo, disseca uma sociedade frágil, que se empondera diante do fracasso alheio. Não é uma peça digerível e nem agradável. A temática é incômoda e a encenação que ultrapassa duas horas, do meio por fim “pesa”. Seja pela sisudez com que é tratado o tema. Seja pelo ritmo (questionável) estabelecido na encenação pela direção de Zé Henrique de Paula.

Grace (Mel Lisboa) chega como uma foragida na cidade chamada Dogville. Acolhida pelos moradores e para que não gere suspeitas sobre sua origem e os motivos de permanecer ali, presta pequenos serviços aos outros, como forma de “paga” e/ou de cativar e calar suas curiosidades. O recado é simples e claro…se “vem a nós e ao vosso reino” bem. Enquanto o outro é útil para nós, está tudo ok. Começou a dar problemas… o fácil é “nos afastar de todo mal“. Ou seja, o ser humano é utilitário, primeira constatação.

A permanência de Grace vai azedar e os homens do local vão se manifestar usando do corpo da mulher como repositório de suas taras e neuras. É como se o ser humano fosse um objeto que nós serve apenas para que aliviemos nossas tensões ou nós seja útil. Numa época onde os crimes cometido contra a mulher tem números alarmantes, a cena dos abusos, poderia causar uma revoltar, mas não. As escolhas da direção para ilustrar o momento é monótono. Não sabemos se para diminuir o peso da situação, ou se foi um deslize da direção, que poderia potencializar e horrorizar o público e o que faz é pasteurizar a situação, tirando dela toda a sua possível teatralidade. O público assisti impávido – ou cansado – a explanação disso. “Antes ela do que eu“, é a lei do cão da nossa sociedade. Segunda constatação, somos objetificados diariamente e está tudo bem. Identificamos e aceitamos.

O texto de Trier é potente por revelar uma sociedade sem a menor empatia com o próximo. Uma sociedade doente, convenhamos. A produção em cartaz Teatro Porto Seguro é luxuosa e embora a direção de Zé Henrique organize os personagens e ações de forma eficiente em cena, a tensão que ocorre nos minutos finais do filme, não está impressa na versão teatral. É curioso percebe que se o diretor dinamarquês “bebeu” do teatro, a versão teatral se apoia no audiovisual para potencializar a encenação. E justiça seja feita, o trabalho feito por Laerte Késsimos (Direção Audiovisual) é atraente e funcional, elevando o nível da encenação. Vide a primeira cena em que os policiais aparecem colocando cartazes de Grace pela cidade.

Outro recurso audiovisual que funciona com muita propriedade é a utilização de câmeras que filmam full time os atores e os distorcem para que vejamos o ser humano de forma desfocada. Uma imagem que ganha metáforas poderosas pois é como se ilustrasse as máscaras/camadas sociais que trazemos impresso no corpo. É bonito e triste esse recurso. O que não deixa de ser curioso e o fato de que, assim como a película atraiu as pessoas pelo seu tom teatral, a encenação atrai pelo diálogo com o cinema.

Os figurinos de João Pimenta em tons sóbrios e sombrios, ajudam a dar um ar moribundo aos personagens de Dogville. Não são personagens da cracolândia – uma referência aos moradores vizinhos ao teatro – mas sem pensarmos na aparência dos personagens, uma aproximação é possível. É a ausência de cores vivas e vibrantes que uma das causadoras do clima de tensão da peça. Dogville se passa nos anos 30, e é como se nós, com o atual sistema politico e suas mentalidades retrogradas tivessem regredidos a uma década atrás.

Mesmo que o elenco tenha de forma geral um desempenho satisfatório, vale ressaltar que a protagonista interpretada por Mel Lisboa é composta sem novidades; Eric Lenate imprime uma voz forçosamente teatral e que destoa dos demais; Thalles Cabral é de novo escalado para o papel do garoto problemático e é refém de maneirismos comum ao interprete desses personagens e Fabio Assunção a “estrela” da encenação, não tem o protagonismo esperado, o papel masculino de maior destaque ficou a cargo de Rodrigo Caetano, que acerta o tom e cria empatia com o público.

A rejeição que supostamente Grace oferta a Chuck (Fabio Assunção) não é posta em cena de forma clara, bem como a virada que a protagonista dá, passando de mocinha a vilã em segundos. Nesses dois quesitos o filme é mais eficiente. Embora a peça tenha seu charme, mesmo não sendo arrebatadora, é curioso acompanhar as escolhas artísticas. É como se filme e teatro pudessem se complementar.

O problema que permanece em ambos? Talvez continuar torcendo por Grace.

Rodolfo Lima

Obs: a peça fica em cartaz no Teatro Porto Seguro (  http://www.teatroportoseguro.com.br ) até 31 de março, sexta e sábado as 21h e domingo as 19h

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